sábado, 27 de dezembro de 2014

Mal-nefasto aos Cabeças de Vento


I

Um anjo torto, um vampiro.  Um xamã, um caralho. Pela voz do fogo e pelo apagamento das sobriedades. Pela língua solta e fria no encéfalo eletrochocado de poemas. Não permitir o confortável, nem a palavra ao alcance do braço – escalar o perigo e berrar. Experimentar os abalos sísmicos das avenidas e não calar. Sujar-se de incêndios.

II

A vida só deve arder no olho de cirrose desta cidade. Qualquer metrópole suplica pelos suicídios de seus poetas: seja com gás, com navalhas ou com sintagmas. Leitura de ébrio para escândalo dos bons moços e das castas senhorinhas de sacada. Está escancarada a caça ao que ainda não tem feições nem nome. Eis nossa primeira persona non grata.

III

O que se passa meus chapas? Olhem à volta. Lá fora o boato se espalha: o poema não é só brinquedo ou trapaça, sem-vergonhices com a linguagem na vulva da língua. O poema também fode teu neurônio, tua risada. O poema, as mãos de seda e o coração de ferro. Tua arrogância na mesma poça de mijo, sêmen e bile de um indigente. Sem perdão.

IV

Não temer tesoura e cola. Mas ter cunhões pra olhar nos olhos dessa galeria de putos que nos precederam. Saber que eles permanecem aqui perto, nossos vizinhos de quarto, gemendo mais alto, fazendo as orgias mais originais, tendo os mais longos e invejáveis orgasmos. Chegaremos lá?

V

O rock ainda faz os melhores hematomas. Ainda é rock a roda punk. Mas ninguém admite estar cansado dessa roda onde só se bate com luvinhas de pelica. Vamos lá, onde o primeiro foco de incêndio, a primeira baderna no olho do cu da rua? Há muito tempo eles acusam-se de estar fartos e nós? Será que ainda demora pra perceber que o recreio já acabou?  Pula pra cima, cai do muro que embaixo só resta os cacos. Eu quero. Vi. Ver.

VI

Pela mulher atravessando todos os olhares de fome. Ela sendo o poema que devasta nossos exibicionismos de garanhões capados. Pela mulher percebendo as mentiras do poema e de quem o sustem e não se deixando enredar: fazendo o seu. Sereias seriais, jamais jamais só tigresas com muito ódio no coração: o poema é a última vibração dessa chama. Pela mulher, o monumento de seu reinado sem vingança. A maravilha de seus mamilos. Nossa fome persiste, nos resta engolir em seco e vidraças. Pela mulher em pelo.

VII

Daqui não dá mais pra fazer meia volta.

VIII

Pela devastação de toda zona. Zona de conforto. Pra quê tanto mimo? Meninos e meninas das rotas de fuga, mamãe e papai sempre a postos, ícones de merda dessa geração. Eu quero olhar nas vísceras derramadas do louco. Onde estás ó louco dos vigésimos andares da insanidade metropolitana? Onde tua queda livre perante pessoas cheias de nojinho e pirraça? Onde estás que não chegas com teu chinelo a tiracolo pra enfiar na bunda desses pirapatéticos?

IX

Não. Não saberão o que eu soprei ao nada. O que eu perdi. Ninguém sabe perder. Imagine perceber quando acontece com o outro.

X

Cada um anda sozinho tão acompanhado. Desolação. Todo mundo é cabeça aberta, todo mundo respira um mundo novo de possibilidades. Pula que eu quero ver. Vamos! Enquanto eu mastigo a fúria, que vem pedrada como minha lágrima e depois suspende até minha fala. Patéticos, meus camaradas patéticos, maduros como azul com amarelo, sábios da vida e das versões perfeitas do sexo feito com medo. Experientes maníacos da autopromoção. Pela gagueira que um dia acometerá vocês. Pela mudez da boca costurada.

XI

Eu não conheço as planícies. Eu não me interesso pelo que diz o monge, não me peça ouvidos.   Eu não pretendo calma. Eu não represo por ter calma, represo por ter fúria e porque eu quero. Meu querer depois de aceso só vira sombra no estômago de um cadáver. Eu posso tocar isso. Sim, eu posso. Pela loucura de quem não usa retrovisores, pela loucura de quem treme, mas não suspende a mão, pela loucura de quem não tem medo do abismo e sua multidão de águas. Pela loucura de não poupar os fígados.

XII

Essa não é. Não é. Não é a hora de se arrepender.

XIII

Eu sonhei com uma tribo onde as coisas eram divididas. Essa tribo hoje chupa as raízes do bosque mais frondoso. Ossadas patéticas, gente outrora viva, utópica e bem mais patética. Alterar-se para perceber mais fundo em cada pose a raiz patética de nossos dilemas todos. Pela vida mais interessante que as notas em meu caderno encardido. Pelas portas das pernas sempre abertas. Pelo fim dessa merda de máscara adaptável a qualquer ecossistema. Ah a música não me deixando esquecer vossas desafinações. Pelo amargo mais amargo desse copo e por minha cara que não vai se alterar. Pelos meus olhos que não cansam de esperar a ruína de vossos cabelos.

XIV

Permaneço só. Já sei onde cada peça repousa antes do bote. Agora eu. Eu. Eu quero tocar isso pela destruição de tudo o que é frágil. Tão frágil que sequer consegue admiti-lo.

XVI

Estamos em depressão. Meus bens! Onde meus bens e a tribo fodida assentarem. Batucaremos

XVII

Aplausos! Aplausos! O número está só no começo. Bobocas da corte. Menininhos maus. Poliglotinhas de xoxota rasa.  Vocês sempre se saíram muito bem de todo buraco onde enfiarem essa cabeça de vento. Vamos à merda, vamos todos. Todos e ninguém. Dizem que a gente chega lá.  

XVIII

Salada. Nosso poema bem poderia ser uma salada de frutas salgadas. Uns bombardeios no sempiterno das virilhas. A nudez é o melhor recado e o mais patético. Ó patéticos testículos! Ó patéticos grandes lábios!

XIX

Selvagem! Dicionário, cemitério, sanatório: mijemos na cabeça, mijemos. Mijemos na cabeça desses filhos da puta que passam pertinho. Pertinho do poema e ficam fitando enojados. A orgia. Pela decapitação das cabeças de vento! Já!

XX

Estamos bem na foto! Meus bens! O amor faz cu doce, não quer me dar nem um beijo de língua, a buceta dela é tão linda! É tão linda! Tão suculenta! O amor é essa coisa que eu nunca acreditei com olhos arregalados. Eu sou um pervertido, meu amor. Eu quero te comer sua linda, eu não quero te dizer um poema: troco meu poema pelo meu pau.

XXI

Geração de merda essa minha. Estamos sozinhos e fodidos. Eu gosto de rir na cara desse século: não tenho medo de sua boca de esfinge, de seu cu e suas engrenagens. Esse caralho de século e suas putas parindo poetas. Os homens comem as mulheres, as mulheres se comem e depois dão pros homens e está tudo bem. Amor livre?  Ah deixemos de utopias baratas que o shopping está cheio de escadas rolantes exatamente pra que evitemos esse tipo de esforço físico. Amor livre? Ah conversa de otários e orifícios.

XXII

Quando pensei que o malnefasto estava pronto me acenderam tantos motivos... temo nunca mais termina-lo: é certo que a certa altura o abandonarei e mais certo ainda que o lerei para quem deve ouvi-lo. Foda-se o resto. Quem se magoar que procure uma estaca para se empalar.

XXIII

Se eu disser que estou farto vocês vão considerar um plágio então que se fodam vocês também. Pois estou farto mesmo. Olhem à volta esse circo, esse espetáculo repetitivo e canibal... pois fiquem todos sabendo: sou mesmo cruel quando quero. E eu quero.

XXIV

A fúria? Eu queria que escapasse do texto direto para a jugular dos putos que aporrinham minha vontade de dizer coisas breves. Sangrá-los seria um magnífico e verdadeiro espetáculo.

XXV

Eu paro quando quiser. Quando achar que já ardeu o suficiente. O texto parece algo tão decente: me dá pena às vezes... bem pouca pena... Bem poucas vezes, mas o texto deles acontece num instante tão singelo: é uma lástima enfiar-lhe uma broca no cu – pena não fazer isso com quem o escreve... pena mesmo...

XXVI

Sabem mesmo o que é a loucura? Brincando com tanto fogo vocês chamuscam a bunda seus malandros... que caiam de cara na fogueira: não se metam com o xamã que ele lhes puxa a perna, fode vocês de mau jeito... brincar com fogo: enquanto a gente gasta os dias tentando mantê-lo aceso... se isso for justo eu me afogo na primeira maré de setembro. Enquanto isso, estou rindo, rindo com força porque somos muito. Muito. Muito patéticos. Muito patéticos.

XXVII

...

XXVII

Outra coisa escute bem. Escute só. Mas escute mesmo: Eu também não quero fazer razão. Razão! Razão?! Ah! Eu não quero.

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Salve o vampiro & o Xamã. Venham pegar essa turminha que tem medo...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Bodas



Estou morrendo. Transponho uma porta, rastejo em minha própria hemorragia. Um corredor de chão rubro se espraia de mim. Agora, deitado, vendo o líquido descer rumo ao fim das paredes, comprovo o que sempre suspeitei quando andava descalço por aqui, o piso da casa está desnivelado. Pena que não me resta tempo para conserta-lo. Nunca mais. Levantando-me. Seguro as paredes como um lagarto, sinto a frieza dos tijolos em minha barriga, a vista é turva, sombras enlaçadas nos cílios, mal diviso meus sapatos obscuros, meus passos. Tenho à frente este corredor sem fundo, abrindo-se num túnel apagado, caverna dentro da casa, não me lembrava de ser tão longo o trajeto daquele quarto ali atrás, de onde saí a custo, até a porta da rua, posso crer que ela me aguarda logo à frente, escondida no vazio, minha salvação. Quase cadáver, meu corpo alquebrado. Desenhos de sangue. Para quê pintei essas paredes no último natal? O corredor era branco. Agora há gravuras encarnadas, havia outras, o sangue pouco a pouco as decalcou como faziam as crianças, ou são outras figuras, animais em transe, estranhas formas se contorcendo? O corredor é uma tela viva, fervilhando de bichos malignos, maldições de meus olhos? Delírios? A morte se aproximando de mim com seu séquito?  Chega-me novamente a visão daqueles olhos. Quando os mirei soube que a hora do acerto de contas havia chegado. Não trocamos palavra. Ela sabia que terminaria assim. Porque não me deixou ir embora? Porque não largou a maldita arma? Mirava meu coração e eu tremia. Eu não sabia que terminaria assim. Por isso não sabia como explicar. Ela nunca quis entender. Há orifícios em meu peito, e um líquido quente encharcando minha camisa vermelha, outrora branca, há marcas de unha em meu pescoço, em meu rosto, há seu perfume no meu corpo. Ela ainda quis ser minha. Nua e louca. Eu queria mata-la. Rolamos pelo chão do quarto, envoltos no silêncio, só nossa respiração ofegante rasgava aquele véu finíssimo. Tentamos nos estrangular, em nossas unhas, mesmo nas minhas, tão curtas, ficaram resquícios de carne. Ela estava mais forte do que eu, movida pela fúria, pelo desejo de me ver sangrar até a morte. A arma já descarregada: uma bala estilhaçara o abajur sobre a cômoda, outra se fincara na madeira atrás do espelho fazendo chover sobre nós cacos de vidro, uma terceira alojou-se no meu ombro esquerdo, outras duas formaram quase um mesmo buraco logo abaixo do bolso direito de minha camisa e a última escapara pela janela. Eu queria viver. Sem balas, mas ainda não satisfeita ela me dominara, estava sobre mim, me sufocava. Meus olhos procuravam uma defesa. No chão daquele quarto os pedaços do abajur e os cacos de vidro. Ela parecia cega, olhava para meu rosto, mas certamente via outra cena, mais cruel. Seus olhos pareceram abrir mais quando gritou ao sentir o primeiro golpe entre suas pernas. Senti em minha mão o calor do sangue dela. Tentei ser rápido, continuei enfiando o caco de espelho, com toda força que ainda me estava. O silêncio persistia, embora eu quase pudesse ouvir o som do vidro rasgando sua carne, a maciez dos lábios. Não esboçou resistência. Entregou-me seu corpo mais uma vez. Montei sobre ela. Eu te amo, e enfiava mais o vidro. Eu te amo, ela respondia e parecia sorrir. Eu te amo, minhas forças acabando sobre o corpo dela. Eu te amo, e as palavras dela saiam com sangue. Eu te amo, minha mão já se perdia dentro daquele corpo. Eu te amo, era só um gemido em surdina, Eu te amo, algo pulsava perto de meus dedos, Eu, algo deixou de pulsar dentro dela, mas o sangue não cessava, se misturava com o meu. Fiquei algum tempo deitado ao seu lado, como fazia desde a lua-de-mel, há tantos anos atrás. Como eram belos os seus cabelos, como a dor fizera de seu rosto um retrato medonho. Não fechei seus olhos, permaneciam, lindos. Beijei uma última vez aquela boca, senti o gosto salobro, coagulado. Transpus uma porta, rastejei em minha propria hemorragia. Estou aqui, pintando com meu sangue as paredes do meu lar, preciso chegar à porta, preciso fugir antes que cheguem, preciso. Já posso ver a porta, mas é muito tarde. Caio aos pés da madeira. A dor dilacera minhas entranhas, me resta pouco sangue, pouco ar. Fecho os olhos e já posso ouvir lá fora as risadas inocentes de nossos filhos voltando da escola.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Há risco, a vera?


“Meninos correndo perigo/...” * primeiro verso de uma canção dos irmãos Borges enterrada num LP de princípios dos anos 80. O típico estopim de nostalgias impossíveis pela ausência de memória. Corremos perigo? Eu me interrogo dentro de um porão, sob luzes ofuscantes, luzes-faca-de-ponta-inflamada.

Não queria estar plácido: do jeito que estou - me envergonho da dúvida e do medo.

 Não queria estar em minha pele: assim como estou - me abandono em elucubrações de monge.

Não queria estar aqui: na pose em que estou - me extravio nas obrigações e moralidades dos lugares sagrados ou públicos.

Não queria estar e estando perceber qualquer equilíbrio, qualquer chão onde deixar à vontade os pés, qualquer sensação de abrigo, qualquer ilusão de amigo.

Quem ousaria correr comigo? Correr é perigo? Dizer é perigo? Disse um velho anjo entortado desde a fundação dos céticos pelo peso de volumes e brochuras brochantes: que é perigo sim –dizer – e mais: é divino. Maravilhoso, divino, maravilha, diva, deva, dívida. Dizer o discurso sem curso-correnteza (sem análise de conversação – alô, hello, até mais ver –), dizer o poema sem gesticulações de missa do galo, dizer a palavra sem a palavra ser menos precária que nosso medo de errá-la, engasgá-la, sufoca-la entre brônquios e vértebras várias, dizer o indizível na ausência das patas peludas do abecedário, dizer o perigo mirando seus olhos de poraquê com água até as têmporas, dizer e dizer até não sobrar um verbete sequer sobre o campo do massacre. Alguém ainda quer dizer?

Eu não imploro violência eu a exijo como incontornável, como única chuva de motosserras nos piqueniques dominicais e superlotados de bons-mocinhos salvadores da desumanidade, como única dose letal para a paciência e os bons costumes. O conhecimento do verso e do ritmo deveria nos adentrar com a fúria de uma falange, com a música metal-blindagem de um tanque, com os rumores-tonelada de um porta-aviões.

Eu não sugeri violência: não se iluda meu bom moço. Eu não sugeri violência: Eu a empunho com todas as lâminas e garrafais primeiras páginas de qualquer poema. Grito na praça é rito e trapaça? – você me interpela e já dispara: intervenção barata inseticida contraponto (morrem formiga e cigarra) e a multidão não perde a hora do metrô – então vamos: Werneck esmagamentos, furtos, estupros por Santa Luzia / Joana Bezerra – Central. E continuas tua preleção: Grito no beco é ranço de boteco, é desarranjo e lindo – adjetivo famigerado e desultrapassado em banho maria – Sacramentas, por fim, em pudicícia de Castrati: grito no grito dos silenciados é sangue no olho, é coisa de estouro desbaratado.

Aí sendo assim eu intimo a vós e vós todos:

Riam de minha fome e sede. Riam do absurdo e das sementes de fúria debaixo de minha língua. Riam do grito e do riso parcamente mastigado pela timidez. Riam das garrafas e de suas mensagens fadadas ao movimento impiedoso das ondas. Riam de vocês mesmos quando não encontrarem mais graças em minhas maneiras. Riam dos gramáticos e dos linguistas que riem dos poetas e dos masoquistas (e os sabem elementos de um conjunto comum). Riam de suas próprias vidas de merda e depois de suas mortes de merda e dos seus descendentes que nunca estarão preocupados de lembrar o que vocês fizeram na hora de dormir. Riam enquanto tiverem dentes e depois dentaduras e depois uma caverna escura cheia de lapsos e fiapos de fruta podre.

Enquanto isso deixa: Eu seguindo por aí como tô aprendendo – ligando pra tu assim pra parir textos assim e só – tenho mais o que não fazer. E brindemos: Saúde aos hipócritas e aos passistas da avenida paulista e aos macacos do circo transamérica e aos dementes do Alcides Codeceira e aos beduínos do Saara e aos “meninos cabelos de mel/ deixar os abrigos pra trás/ brincar de correr e cair/ aprender.” * Há perigo? Haverá? Pois eu arrisco, Deveras.

 

*da música “Pros meninos” dos irmãos Borges nas vozes de Milton Nascimento.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Derivando

O ato perigoso de pensar. Mais do que nunca a sensação insistente de estar solto em águas desconhecidas. Estar no caroço do tempo, sala secreta no recôndito do agora, nesta cela, jaula, armadilha e perceber-se presa fácil da dispersão. Viver e pensar em fragmento. Ideias não sofrem mais o amadurecimento silencioso e solitário preferimos espargi-las antes mesmo do estado claro de semente, semear o mecanismo inconcluso, as maquinarias desconjuntadas, as interligações rotas, prenhes de precariedade e veneno. O poema em tempo real, ao vivo e em carnes, texto vitimado pela exigência absurda de nossos velocímetros virtuais. Quem ousar um andamento largo em tempos de prestíssimo neurótico estará fadado ao exílio, desterrado e ingrato para com os generosos tempos da democratização da informação. Pois eu sorrio no focinho do demo da informação quando percebo o quanto pode ser bom um exílio. O bônus miraculoso do silêncio já supera em milhares de patamares o acúmulo desumano de "capital cultural" (perdoem aqui a tentativa de ironia, e desde já reconheço minha incompetência nos territórios do humor) que é ofertado por aqui: vejam o bem que a rede social promove ao fazer o indivíduo sustentar dezenas de conversas paralelas sobre temas completamente distintos e até oposto por meio de nossos famigerados espaços de diálogo virtual, a figura deve desenvolver alguma habilidade sobrenatural, só pode ser essa a explicação. Não estou escarrando no prato raso, não me acusem tão rápido de ingratidão. Mais não dá pra ignorar o movimento das ondas, a consequente dança dos barcos, a trajetória que o corpo descreve montado sobre as águas e somos muito mais boias, para tal monotonia (presente na raiz mais profunda da palavra) existindo, que embarcações, sugestão de movimento planejado, de controle dos ventos e remos.Somos boias inúteis, sem o peso que as lastreia e dá função prática de sinalização. Cada vez mais nos afastamos da pedra e só nos resta o sobe e desce das ondas, a soltura no vazio líquido. É impossível, mesmo fechando os olhos e protegendo-os com vendas, e tingindo essas vendas com o ranço do escuro, não ver nitidamente o estado tragicômico das coisas: é angústia que começa se espraiando pelo ato perigoso de pensar, desemboca no suicida ato de criar para destravar as mandíbulas de um oceano quando anula o limite dessas águas entre os homens e no mesmo molho (pensar em geleia já seria crueldade de minha parte) fervilham as promessas na arte, no pensamento político, na filosofia... eu mesmo já vou me afogando sorrateiramente nessas mesmas linhas, não nego a autoflagelação embora ainda tente me segurar desesperadamente em alguma pedra que permaneça pesando as toneladas de sua impassibilidade na fundura dessas águas de extravio. Só me permito desejar saúde aos náufragos e salve-se quem souber... 

domingo, 9 de março de 2014

Novamente nove de março

Vivo numa cidade demarcada. Marcos de pedra, limites, cercas e muros. Vivo numa cidade sitiada pela posse. "Na minha cidade a gente aprende a morrer só", como diz Márcio Borges e Milton, e aprende a esquecer. Mesmo hoje depois de tanto "avanço", nestes tempos de tanta reflexão políticamente correta, ainda cultuam certos "vultos" (e são vultos, sombras mesmo) de nossa história, hérois que se notabilizaram pela crueldade e cobiça, pelo desejo de poder e prazer... hoje merecem estátuas e status de épicas proporções. Meu 9 de março tem um significado bem diverso do que estou vendo por essas bandas. Não consigo pensar em festa, em aplaudir uma "civilização" que se firmou sobre o sangue de outra, "civilização" que se apossou em nome de uma "fé" de um chão que não tinha dono porque os que viviam aqui sentiam-se pertencidos à natureza e não o desastroso contrário que os europeus trouxeram em suas naus... como posso comemorar a devastação da mata atlântica, a poluição dos rios, a matança e contrabando de animais, a dizimação de tribos, seja pela espada, seja pelas doenças que mataram uma população que nunca precisara antes se tratar de um simples resfriado... Somos todos resultado desses desencontros e encruzilhadas históricos, eu sei. Somos cria desse tempo, herdeiros também... isso não nos obriga a rituais tão contraditórios, a cerimoniais tão pios para celebrar crimes hediondos. Creio que a palavra genocídio não será lembrada, nem pronunciada hoje por alguma ilustre figura que em solos de Igarassu for tecer elogios à Duarte Coelho, soldado nas índias, colonizador no Brasil, mãos de ferro em Pernambuco... ninguém perceberá o lapso (afinal há coisas muito belas para se falar... feitos heróicos, benfeitorias, desenvolvimentos...) ninguém fará a menor questão por lembranças de luto e dor (afinal como já me disse certa vez alguém: "eles já estão mortos mesmo..."). Cosme e Damião foram médicos cristão martirizados por terem dedicado a vida aos pobres, séculos depois tornam-se patrocinadores de batalhas sangrentas... espero que o sono dos justos os tenha impedido de ver tamanha agressão à suas histórias de caridade e entrega... quanto a mim continuo sem conseguir engolir esse amargo travo que a história guardou... outros sequer tem conhecimento e muitos que tem procuram esquecer, varrer pra debaixo do tapete... faço agora o que fiz ano passado e farei enquanto minhas mãos e meus olhos permitirem: grito com palavras na tela como gritaram os índios (segundo nossa "linda" lenda) seu grito-escarro Igarassu, não um grito de espanto (eles já conviviam com navios a pelo menos trinta anos) mas um alarme, um aviso, presságio de tragédia, não havia festa no som entre as folhas da mata, o grito atravessou folhagens para avisar que a morte chegava... Igarassu: um marco de pedra. Um marco de sangue. Meu 9 de março não tem hérois, nem sinos dobrando esquinas barrocas...

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Mulher entre salamandras

Ninho,
peças dispostas
à gravura do campanário,
novelando-se
reptilianas omoplatas,
espáduas de bronze
retorcido, porta-seios
de medonhas ferragens,
sustendo-se nas tranças
trêmulas da tarântula,
os olhos da moça,
seu corpo entre corolas
de pus e lama, maciez
de pelos subsolos,
por dentro
de suas carnes tépidas,
catástrofes e torrentes
gangrenadas, não cessam,
por sobre pedras e músculos
coagulavam algumas feridas,
rabiscos não se gravam em
fogo brando, necessário é
a pira de todas as imensidões
ardendo abóbadas, necessário
é a música das brasas,
necessárias salamandras,
iletradas, mordendo teus nervos,
fazendo círculos na tua nudez.
À roda o mundo, contudo ressonas.